A primeira animação indicada à Palma de Ouro desde Waltz with Bashir, em 2008, A Mais Preciosa das Cargas foi considerada uma surpresa durante a premiação no 77º Festival de Cinema de Cannes, em 2024. O filme francês, baseado no romance homônimo de Jean-Claude Grumberg e adaptado por Michel Hazanavicius — diretor consagrado em 2012 com o Oscar de melhor direção pelo também vencedor do Oscar de melhor filme daquele ano, O Artista — chega aos cinemas brasileiros pela Paris Filmes. Traz uma adaptação propositalmente humilde e crua, mas que possui seu verdadeiro tesouro em sua história. Mas será que é suficiente?
Personagens carregados de emoção
Ao primeiro olhar, quando se observa o estilo de arte escolhido propositalmente em A Mais Preciosa das Cargas pelo diretor, não fica claro o motivo exato. Porém, um dos objetivos é favorecer a narrativa, de modo que nada mais a atrapalhe. A intenção é mostrar o “ouro” durante toda a jornada em meio ao inverno árido e silencioso da Polônia — mais precisamente, em uma floresta, no período da guerra.
A Mais Preciosa das Cargas conta a história de um casal de lenhadores que sofre com a fome, o frio e a pobreza, devido à guerra que os cerca. Após a esposa do lenhador encontrar um bebê que foi jogado de um trem no meio da neve, ela decide resgatar a criança, trazendo consequências imutáveis para a vida do casal.
A abordagem de utilizar um filme que fala sobre a guerra para mostrar os cidadãos comuns — que continuam vivendo suas vidas mesmo em meio à dor e ao sofrimento, e que muitas vezes nem sabem o que verdadeiramente está acontecendo — é o traço que torna o filme memorável. A esposa do lenhador, Pauvre Bûcheronne, possui, entre todos os personagens, um arco claro em relação a isso. Mesmo sendo uma personagem alheia a tudo o que está ocorrendo, uma hora terá que enfrentar os fatos e tomar algum posicionamento.
Em uma história, as vezes o menos é mais
Apesar de ser um filme com temática de guerra, a narrativa de A Mais Preciosa das Cargas começa de forma tranquila e, conforme os minutos do curto filme passam, se torna cada vez mais densa, a ponto de ficar difícil de digerir. A escolha por alternar a visão de um cenário abordado constantemente pelo cinema faz com que a empatia pelos personagens se torne ainda maior. Afinal, grande parte da população durante uma guerra tenta evitar estar envolvida com ela.
Mas o ouro da narrativa de A Mais Preciosa das Cargas é forjado graças ao diretor Michel Hazanavicius. O uso da técnica “Show, don’t tell” — ou seja, “Mostre, não diga” — consiste em utilizar ações e detalhes dos personagens para contar a história de maneira sensorial, sem precisar deixar explícito o que eles desejam. Graças ao seu maior sucesso, o filme O Artista, de 2012, vencedor do Oscar de Melhor Filme, Hazanavicius já havia explorado essa técnica de maneira exemplar. A obra narra a vida do ator fictício George Valentin no auge de sua carreira no cinema da década de 1920, que começa a se sentir ameaçado pela chegada inevitável do cinema sonoro. O filme tenta replicar os longas da era do cinema mudo, sendo uma metalinguagem sobre o próprio tema que aborda — o que exigiu o uso magistral da técnica “Show, don’t tell”.
Hazanavicius nos mostra que, mesmo mais de dez anos após o filme que o consagrou, continua capaz de criar cenas impactantes e emocionantes utilizando apenas imagens e silêncio. O uso do silêncio é o personagem coadjuvante perfeito para a ocasião, trazendo junto a ele sentimentos de deserto, claustrofobia, solidão, melancolia e outros. Em grande parte do filme, esse recurso é coerente; porém, em alguns momentos, torna-se um pouco arrastado — mesmo considerando o curto tempo de duração.
Simplicidade no meio visual
A técnica usada para contar essa história não é nova. Existem filmes como Persépolis, Waltz with Bashir e, mais recentemente, Flee (2022), indicado a três Oscars, incluindo Melhor Documentário. Conforme dito anteriormente, por se tratar de traços mais simples, o filme pode afastar parte do público, mesmo contando uma história emocionante. No entanto, pela liberdade artística e imersiva da obra, a escolha se justifica.
Por se tratar de uma temática sobre a humanidade, o uso gráfico faz total sentido — principalmente por remeter a um desenho feito em um caderno ou algo do tipo. Isso gera um sentimento maior de empatia, por parecer que toda a história foi “feita à mão”, o que a torna ainda mais especial.
O uso das cores, raramente quentes, conversa diretamente com o silêncio instaurado em muitas cenas, intensificando a imersão nesse mundo gelado e sombrio, que se aquece a cada interação entre as pessoas e o bebê.
Como nem tudo são flores — nem mesmo dentro de uma floresta —, a iluminação em muitas cenas se torna excessivamente escura, obrigando o espectador a forçar os olhos para entender o que se passa em momentos nos quais o visual era fundamental.
O maior responsável pelo sentimento imposto ao filme
Nos créditos iniciais de A Mais Preciosa das Cargas, ao ser mostrado o nome de Alexandre Desplat como responsável pela trilha sonora, já surge uma certa expectativa — e, como sempre, ele consegue superar o que se espera dele.
Desplat transforma A Mais Preciosa das Cargas em sua orquestra e se torna o maestro do filme como um todo. Sua trilha sonora está perfeitamente encaixada em cada cena, quase como se obrigasse — de forma positiva — o espectador a saber o que sentir em cada momento. Ela sabe ter presença quando necessário, mas também se recolhe quando o silêncio precisa brilhar. O equilíbrio feito pela mixagem de som entre esses dois elementos é o verdadeiro motor do filme.
Vale a pena assistir A Mais Preciosa das Cargas?
A Mais Preciosa das Cargas é um filme que tenta dar uma nova roupagem a um estilo já saturado — não só no audiovisual, mas em todas as mídias. Porém, em uma sociedade como a atual, histórias como essa deveriam se tornar cada vez mais relevantes, como exercício de empatia e educação. O filme talvez não atraia um público amplo por causa de seu estilo artístico, mas para quem deseja assistir ou ensinar crianças e adolescentes por meio de uma história com potencial de conscientização — sem tornar a experiência assustadora ou traumática — é uma excelente escolha. Mas vale lembrar que o tema não é um conto de fadas, embora veja o mundo com esperança e ainda guarde uma fagulha de fé na humanidade.
Nota Final: 7/10