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Crítica | O Farol

Em 2015, o mundo prestigiou o primeiro longa-metragem de Robert Eggers: A Bruxa. Um choque de imersão fortemente atrelado às condições religiosas e a aversão sobre o desconhecido do século XVII. Misturando o misticismo e a força das lendas como principal fonte de respostas do período, Eggers trouxe um conto macabro posteriormente elogiado pela crítica especializada.

Em seu segundo trabalho, o diretor traz Willem Dafoe e Robert Pattinson para contracenar em um cenário novamente de época, utilizando mais métodos para implementar sua narrativa misteriosa, escrita ao lado de seu irmão, Max Eggers.

Logo de cara, nos deparamos com algo incomum na atualidade: uma tela propositalmente no formato 1.19:1 (quadrada), que lembra as produções cinematográficas durante a transição do cinema mudo para o sonoro, na década de 1920.

A obra, no entanto, aproveita apenas os benefícios do formato para imersão e não contempla de um preto e branco opaco e inconstante, ou do áudio levemente dessincronizado — pelo contrário, a qualidade dos tons de cinza são hipnotizantes, e as extremidades da tela encaixam-se nos momentos de escuridão, proporcionando uma amplitude negra e transformando certas cenas em quadros conceituais. Quando necessário, a fotografia não ortodoxa aproveita do aspecto espremido e das fontes de luz restritas para realçar a sensação de prisão, desconforto e ansiedade.

E é com esse clima que nossos protagonistas são apresentados. A sequência inicial não tem fala alguma, apenas uma trilha sonora misteriosa. Em cortes contemplativos, um em especial, atribui o paradigma do passado cinematográfico: o elenco escasso encara a câmera, estática, onde seus corpos imóveis só quebram a sensação de uma fotografia congelada por conta do incessante vento da ilha de pedra onde se situa essa história macabra. Por uma fatia de tempo, o longa mantém o silêncio enigmático e ressalta o ambiente claustrofóbico: o farol, a nova residência dos dois guardiões.

Geralmente, filmes de elenco minúsculo e cenários limitados acabam pendendo para o teatralismo dramático, mas não é o que acontece em ‘O Farol‘. Mais uma vez, Robert Eggers aplica com primor a direção e afunda, com todas as suas ferramentas, o espectador no mar da pura insanidade.

A ausência incomodante de falas finalmente encontra seu fim durante o primeiro jantar. No diálogo minimamente sem sentido, conhecemos Thomas Wake, um estereótipo de capitão bêbado, e Ephraim Winslow, um jovem que encontrou uma oportunidade de recomeçar. Duas antíteses, destinadas a viver confinadas por um tempo desafiador.

A convivência dos indivíduos cerca-se de cenas sinistras e ressalta a precariedade humana, rodeada com erotismo e impureza bizarra. Conforme a inconstância dos personagens aumenta, os panoramas refletem aos poucos a queda problemática de homens até animais completamente irracionais. Tudo é fortemente impregnado na mente do espectador com detalhes pesados, mas aplicados sutilmente: efeitos sonoros angustiantes às vezes sobrepõem a voz dos personagens, trazendo desamparo para as situações mais grotescas. A trilha sonora, ligeiramente aplicada, completa a tensão do clima miserável.

A fotografia de Jarin Blaschke é bela, desconfortável e inédita na atualidade, mas acima de tudo, captura a minúscula e inescapável ilha, e remete fortemente a insalubridade e solidão de viver preso com alguém desconhecido. Solidão essa que segue um caminho cada vez mais fundo, depressivo e decadente. Conversas aparentemente amigáveis lentamente tornam-se monólogos carregados e prazerosamente aflitivos. As mesmas param de seguir uma linha sã, mas para os personagens, tudo parece merecedor de uma resposta emocional. Afeto, sexualidade, ira, depressão, alcoolismo e violência mostram-se mais agudos e trazem intimidade e ódio ao mesmo tempo, e tudo muda em poucos instantes. Conforme a mente de Wake e Winslow mergulha na paranóia, a natureza ao redor exalta a hostilidade, apresentando-se como uma nova personagem da trama.

A violência, refinada e perturbadora; a podridão, recheada de fezes, vômito, esperma, urina e suor; a psicologia da insanidade e do vício alcoólico… tudo encontra uma única válvula de escape: o humor duvidoso do roteiro dos irmãos Eggers: mesmo em momentos tensos, é muito fácil soltar um riso desconfortável e recuperar o fôlego apenas para vê-lo ser retirado à força. E nessa luta por algo mais, o resquício de entendimento acaba submerso na vulnerabilidade dos delírios. É impossível não questionar: seria este misticismo real ou apenas mais uma ilusão da inevitável demência? — e essa interrogação move mais e mais a curiosidade pelo destino dessa viagem desvairada e tenebrosa.

O Farol supera o patamar de filmes viscerais, angustiantes e intrigantes da atualidade. O roteiro, propositalmente inconstante, exige o máximo de Willem Dafoe e Robert Pattinson, que respondem à altura, em atuações espetaculares. A fotografia peculiar limita o público, mas encanta os interessados, e combina com a história recheada de metáforas, superstições e lendas. Carregado de simbologias e com a dosagem exata de loucura, Robert Eggers novamente se autoproclama como um dos mais novos e promissores diretores contemporâneos.

Farol

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