Com o lançamento de Stellar Blade cada vez mais próximo, e uma demo tendo sido lançada no último dia 29, a discussão em torno da sexualização da protagonista Eve está mais forte do que nunca. Muitos acusam o jogo de ser “apenas uma ferramenta pra p$#$ta”. Eu joguei a demo e discordo das acusações, e gostaria de abrir uma discussão sobre.
Eu gostaria de começar esse texto dizendo que eu gosto de observar o mundo em tons de cinza. Não aquele livro ruim, pelo amor de Deus, mas no sentido de evitar enxergar as coisas apenas como “branco e preto”. Ninguém é totalmente bom ou ruim, e nem tudo deve ser jogado na cesta de “isso é certo”, “isso é errado”.
Quando NieR: Automata lançou em 2017, um dos principais comentários que se via pela internet era a discussão em torno do corpo da personagem principal, 2B. Mais especificamente: a sua bunda. Até hoje existem pessoas que resumem o jogo a apenas uma grande sexualização da mulher, e se recusam a encostar no título.
Porém, as roupas e o corpo de 2B são apenas um elemento dentro de uma história e personagens complexos. E ironicamente, a androide da YoRHa é uma mulher com personalidade e história melhor desenvolvidas do que outra personagem que não passou por nenhuma polêmica do tipo: Aloy.
Não se enganem, eu sou fã de Horizon. Eu fui uma criança viciada em dinossauros, e a mistura de dinossauros com robô é tudo que eu precisava. E mesmo gostando do design da personagem, eu sou obrigada a ressaltar que fora o fato dela ser uma guerreira muito boa que derruba máquinas gigantes em minutos, a Aloy não passa muito disso.
Apesar das relações interpessoais dela terem sido exploradas melhor na sequência, Horizon Forbidden West, ela continua sendo uma personagem extremamente rasa. Apesar de ter convivido com um pai adotivo devoto à religião dos Nora, ela é extremamente ignorante com outros personagens que tenham a sua fé, está sempre com cara de brava, atropela os sentimentos alheios e só liga para cumprir seus objetivos. É isso. Aloy quase nunca passa por conflitos internos ou demonstra alguma fraqueza para os jogadores.
Em apenas uma hora de demo de Stellar Blade, eu senti mais pinceladas de uma construção de personagem em Eve, do que em 2 jogos de Horizon. Na primeira cena do jogo, é possível sentir o seu medo, ela passa pelo trauma de ver todo o seu esquadrão morto na sua frente, e ela também tem uma certa ignorância por coisas da humanidade, o que a faz ser curiosa.
Pra mim, Aloy cai na mesma categoria que outra famosa personagem feminina: Rey, de Star Wars. Ambas passam a sensação de que são mulheres apenas por marketing, sendo mal exploradas e escritas. Eu considero isso mais prejudicial ao feminismo do que colocar uma roupa colada numa mulher de glúteos substanciais.
Mulheres são plurais, pegar um personagem masculino, manter uma personalidade mais masculina e apenas transformá-lo em uma mulher não é uma boa representação. É apenas uma pequena parte de um grupo muito maior. Um bom exemplo está em As Crônicas do Gelo e do Fogo, conhecida mundialmente por sua adaptação em série pela HBO: Game of Thrones. George R.R. Martin é maravilhoso em representações plurais, mostrando o mais variado tipo de mulheres. E é muito bom em mostrar aquela questão do cinza que citei no começo do texto. Os personagens dele não se resumem em “bons” ou “ruins”.
Brienne of Tarth é a guerreira que foi contra todos os preconceitos de Westeros e, apesar de ser muito comparada a um homem por outras personagens da obra pela sua aparência, ainda demonstra doçura em diversos momentos. Arya é a típica “maria-moleque”, desde criança tendo atitudes e pensamentos que desviam do que é esperado de uma garota da idade dela.
Como contraponto, temos Cersei, que é a manipuladora que sabe usar de sua beleza e atributos para conseguir o que quer, sendo uma personagem extremamente forte e feminina. Sansa era a garota sonhadora que queria viver um conto de fadas, até ter tudo arrancado de si e acaba tendo uma transformação completa em sua personalidade. Daenerys é o equilíbrio entre ser mais feminina ou masculina, e conquistando uma legião de fãs pela sua determinação em conseguir o que quer. Sem contar o fato de ter domado três dragões.
E essa pluralidade também deve existir em questões corporais. Tá tudo bem termos personagens mais “tábuas” como Aerith (Final Fantasy VII) e Ellie (The Last of Us), personagens mais musculosas como Abby (The Last of Us 2), meio-termo como Lara Croft na trilogia reboot de Tomb Raider, e mais curvilíneas como 2B e Eve. Não consegui lembrar de nenhuma personagem mulher acima do peso, mas elas são bem-vindas também!
É engraçado pensar como isso é fácil quando um personagem é homem. Nós vemos homens dos mais variados tipos de físico, desde os magrelos, passando pelos “gostosos”, e até mesmo acima do peso. Agora, ao criar personagens mulheres, elas foram tão mal retratadas ao longo dos anos, que ao tentar evitar isso, cria-se um número de regras que acabam mais prejudicando do que ajudando no desenvolvimento.
Eu acho que o foco principal sempre deveria ser em escrever um bom personagem, a aparência é um complemento. É por isso que eu sou completamente apaixonada pelos personagens principais de Final Fantasy VII e X enquanto, apesar de gostar bastante de Uncharted, não consigo sentir a mesma conexão por Nathan Drake.
Sobre a sexualização em Stellar Blade
Acredita-se que a sexualização é ruim por conta de dois pontos: objetificação da mulher, e como um padrão de beleza afeta o psicológico e autoestima de outras mulheres que nunca se sentem bonitas o suficiente. Só que o problema de autoestima não vem apenas de imagens sexualizadas, ter o cérebro bombardeado por influencers aparentemente perfeitas que enchem a imagem de filtros é muito mais prejudicial, por exemplo.
Um estudo realizado com 3 grupos de mulheres italianas, onde o primeiro grupo era exposto a imagens sexualizadas de mulheres dentro do padrão de beleza, o segundo a imagens de mulheres sexualizadas de vários tipos de corpos diferentes, e o terceiro a imagens de mulheres não-sexualizadas também com vários pesos e curvas diferentes, mostrou que apenas o primeiro grupo foi negativamente impactado pelas imagens.
Lembrando que os padrões de beleza são mutáveis. Agora são mulheres mais curvilíneas, mas no começo dos anos 2000, era uma magreza quase que extrema. Uma mulher ter curvas não pode ser um significado de sexualização, e nem de sobrepeso, como era há pouco tempo. A atriz Paolla Oliveira é uma que sofreu muito com questões estéticas, já que tem um biotipo de ter coxas e braços maiores. Felizmente, os padrões mudaram e ela não precisou mais lutar contra a sua genética, podendo ter o corpo que tem hoje. Imagine como um mundo sem Paolla Oliveira de onça-pintada na Sapucaí seria mais triste.
Porém, a objetificação de mulheres não é algo que vem exclusivamente da sexualização. Existem vários pontos dentro da sociedade que fizeram com que mulheres fossem vistas apenas como um corpo que precisa ser bonito para atrair a atenção masculina. Botar uma roupa sexy não é significado de ser um objeto. Inclusive, muitas mulheres ganham dinheiro com sexualização, e se isso as deixam felizes, ótimo. Elas são mulheres tão dignas e maravilhosas quanto todas as outras.
E o contrário também existe. Recentemente, um ator de novelas turcas, Can Yaman, veio ao Brasil. Ele é famoso entre as mulheres que assistem a essas novelas justamente por conta da sua beleza, e moveu mulheres do país inteiro a formarem uma caravana para tentar vê-lo. Descobriram horário em que o voo chegaria ao Brasil, foram ao aeroporto, e assim que ele apareceu, foi uma loucura porque elas queriam fotos, autógrafos e até mesmo… uma passada de mão.
Óbvio, em uma escala muito menor porque a sexualidade feminina é algo recente. Mas a solução do problema não é acabar totalmente com a sexualidade, é justamente permitir e criar coisas focadas para esse público-alvo. Magic Mike, o filme de Channing Tatum onde ele é um stripper, é um excelente exemplo.
O meu ponto é que existir apenas um tipo de padrão de beleza é muito mais prejudicial à sociedade, e principalmente às mulheres, do que a questão da sexualização exclusiva do sexo feminino.
Eu não me sinto no direito de julgar Kim Hyung-Tae, diretor de Stellar Blade, em colocar várias opções de roupas coladas em Eve, quando eu fiz questão de tirar foto de uma cutscene de Final Fantasy XVI em que Clive estava pelado.
Existem vários exemplos de personagens masculinos que atraem uma multidão de fãs mulheres heterossexuais: Dante, de Devil May Cry, Leon, de Resident Evil, Sephiroth e Vincent Valentine, de Final Fantasy VII, entre outros. Não existe uma única mulher hétero que tenha resistido à cena em que Dante aparece sem camisa em Devil May Cry 3, ou qualquer uma das outras cenas em que ele é sexy… Que são muitas.
Uma franquia que passa pelo fenômeno de ter uma grande aprovação entre as mulheres é Like a Dragon/Yakuza. E isso acontece por vários fatores, tanto o protagonista, Kazuma Kiryu, ser um homem exemplar, extremamente respeitador e que demonstra seus sentimentos (em vários jogos da série ele aparece chorando), quanto a imensa quantidade de homens gostosos sem camisa.
É só começar uma treta mais séria que você vai ver um membro da Yakuza arrancando a camisa de maneira extremamente sexy antes de cair na porrada. O dublador de Kiryu, Takaya Kuroda, também atrai uma legião de fãs femininas por causa de sua voz maravilhosa. E não podemos nos esquecer da icônica boss fight de Like a Dragon Ishin!, com direito a dois homens pelados lutando em uma sauna:
O meu ponto, é que o equilíbrio correto para essa situação não é acabar de vez com a sexualização. Ela sempre vai existir, e mulheres precisam justamente ter a oportunidade de aproveitar cada vez mais a sua sexualidade. A melhor resposta para isso é criar materiais que agradem os dois públicos.
Óbvio que eu não estou dizendo que todo jogo precisa estar todo mundo sexualizado. Existem situações e situações. Mas não adianta se apoiar em um falso feminismo e entregar um trabalho pela metade. The Last of Us 2 é inegavelmente um grande jogo, mas que escorrega feio ao colocar Mel, uma personagem nos estágios finais de gravidez, se colocando e colocando o seu bebê em risco porque quer seguir o Owen para lá e para cá com medo dele reatar o relacionamento com Abby.
A cena do confronto das duas, em que Mel diz que não vai para Santa Barbara caso Abby também vá, é uma das coisas mais ridículas que eu já vi. Óbvio que tem o ressentimento ali pela forma como a protagonista caçou e matou Joel, mas fica muito claro que boa parte dessa discussão em específico é movida por ciúmes.
O feminismo tem vários pontos na hora de montar uma narrativa: que a amizade e união entre mulheres seja mostrada, ao contrário de rivalidade por causa de um homem em específico por ser um possível interesse romântico ou qualquer outro motivo idiota; que a mulher não seja apenas um acessório na trama; e que sejam bem desenvolvidas e exploradas, assim como personagens masculinos.
Sim, Eve usa roupas provocantes em Stellar Blade. Inclusive, ela tem várias opções de roupas, o que a criança que brincava de Barbie que habita em mim achou maravilhoso. Isso diminui o peso dela ser uma mulher, aparentemente com traumas bem desenvolvidos, no meio de várias outras mulheres lutando de maneira incrível? Não.
Sem contar todo o trabalho do jogo na criação do universo e até mesmo o combate que, apesar de algumas pessoas ainda acharem que é um hack’n’slash, é muito próximo de Sekiro: Shadows Die Twice no seu sistema de parry.
E se você é uma mulher e está ofendida com a sexualização do título, tá tudo bem. O seu sentimento é totalmente válido. Esse apenas não é um produto para você e novamente: tá tudo bem. Apenas consuma outra coisa que vá te fazer sentir melhor.
Quem sabe, com o tempo não tenhamos mais títulos no estilo de Like a Dragon/Yakuza, ou que a CAPCOM realmente explore todo o lado sexy de Leon S. Kennedy ou Dante. Só sei que eu aguardo ansiosamente para todas as maravilhosas cenas envolvendo Vincent na última parte da trilogia de Final Fantasy VII Remake. Amém pessoas gostosas!
Lembrando que ser gostoso é um estado de espírito.
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